Furlan: o dialeto perdido
Por volta de 1875 começaram a chegar os primeiros imigrantes Italianos ao Brasil. Como cita a famosa música "Mérica, Mérica", após mais de trinta dias de viagem de navio – mais conhecido na época como máquina a vapor – eles chegam à América. A povoação das colônias determinadas pelo governo brasileiro espalha os imigrantes principalmente pelos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Essa divisão leva muitas famílias para as terras onde hoje se situa a cidade de Guaporé.
Os italianos que aqui se estabeleceram vinham de regiões distintas da Itália e carregavam, portanto, hábitos culturais distintos, que podiam ser percebidos principalmente na fala. Desembarcaram na nossa região pessoas que falavam o dialeto vêneto, hoje o mais conhecido pelo fato de ser falado pela maioria dos imigrantes. Havia imigrantes que falavam o dialeto lombardo, trentino e aqueles que se comunicavam em friulano. Essa mistura de línguas enraizada nesses imigrantes acabou por afastá-los, e algumas comunidades se formaram em torno de famílias que se comunicavam no mesmo dialeto.
Guaporé recebeu naquela época uma pequena quantidade de imigrantes da região do Friuli - Venezia Giulia, que faz divisa com a Aústria, Eslovênia e coma região do Veneto. Cerca de 4% dos imigrantes que se instalaram por aqui vinha dessa região. Devido à sua localização e por alguns acontecimentos históricos ocorridos na antiguidade, os imigrantes dessa parte da Itália tinham características culturais próprias. Uma delas se encontra na língua, que sofreu influência histórica de eslavos e germânicos, o que fez esse dialeto tomar rumos diferentes do tradicional falar italiano.
Com uma forte influência alemã, esse dialeto chegou a Guaporé na ponta da língua de algumas famílias. Esses imigrantes originários da região Friuli se estabeleceram numa região de muitos morros, localizada na terceira linha de nossa atual cidade. Por lá, mantiveram seus costumes e idioma. Relatos históricos dão conta de que havia certa rivalidade entre Italianos vindos da região da Friuli e do Veneto. Muitos se recusavam a fazer negócios entre eles.
Como eram minoria e se recusavam a se relacionar com outros imigrantes que não fossem seus pares, os Friulanos se viram isolados. Devido a essas medidas, os casamentos ocorriam entre pessoas desse círculo de famílias. Porém, com o passar dos anos, o relacionamento entre parentes próximos se tornou inevitável. Segundo relatos da Paróquia de Guaporé, no ano de 1903 os Friulanos fundaram sua primeira comunidade e ergueram a Igreja da Capela.
Passados mais de 100 anos, muita coisa se perdeu nos ventos da história. Os primeiros imigrantes deixaram este mundo e o que já era minoria praticamente desapareceu. Praticamente, mas não completamente. Localizada no topo do morro, no alto de uma encruzilhada, a recém-restaurada Igreja de madeira irradia sua cor laranja e segue de pé. A alguns metros da escada de concreto em curva que leva à porta de entrada está o sino, conhecido pelos antigos moradores como "campana". O salão da comunidade se encontra no lado contrário da Igreja e, visto de fora, se mostra conservado e com sinais de reformas recentes. No alto de um dos vários morros da cidade de Guaporé, onde o sol se põe mais tarde, está viva uma herança da história. Está situada a Capela Nossa Senhora das Graças Furlani. Hoje na comunidade de poucos moradores – alguns deles descendentes próximos dos imigrantes Friulanos – o dialeto não conseguiu ser conservado.
A manhã de domingo nasce ensolarada. Os ponteiros do relógio ainda não apontam às 9h. A rua Luiza HackPasquali, no bairro Promorar, ainda não tem o movimento costumeiro. Numa casa encoberta pela elevação do asfalto e protegida por um portão de ferro marrom, palavras esquecidas deslizam por lábios e línguas para ganhar um Mundo que já lhe pertenceu."Tchaval", "sedon" e "canaul", palavras desconhecidas para a maioria dos brasileiros é até mesmo para alguns italianos, ganham sentido na conversa dos irmãos José Santin, 77 anos, conhecido como Bepeta e Armando Félix Santin,72 anos, mais conhecido como Braga.
Ex-moradores da Capela Furlani, eles ainda conservam o dialeto ensinado pelo avô. Em meio a uma história e outra, o sorriso toma conta dos dois semblantes e as gargalhadas tomam conta da área da residência. Os irmãos recordam que antigamente na Comunidade havia várias famílias que só falavam o dialeto Friulano (chamado por eles de “Furlan”), como os Didomênico, Magnan, Troian, Bassani e Santin. Eles afirmam que o primeiro idioma que aprenderam a falar foi o Furlan. Depois, aprenderam o dialeto Vêneto e, só depois de adultos, o português.
Outra evidência histórica comprovada por esses descendentes diretos dessa linhagem é a questão do isolamento dos Friulanos. A esposa de Bépi recorda que quando havia uma festa numa comunidade próxima os Friulanos ficavam afastados num grupo próprio, cochichando e dando risadas. Se alguém se aproximasse pouco importava, pois não conseguiam compreender o que eles diziam. O casamento entre parentes próximos fica evidente: o pai de Bepeta e Braga era Santin, e a mãe, Didomênico. O avô paterno carregava o sobrenome Santin e avó paterna, Didomênico. Isso mostra que o relacionamento entre os membros da Comunidade Friulana era uma realidade.
Bepeta e Braga são raridades. São dois dos poucos moradores de Guaporé que ainda cultivam esse dialeto. Segundo eles, não deve haver mais de dez pessoas que ainda saibam falar Furlan. Em meio a uma conversa descontraída, alternam falas do dialeto Furlan com falas do Vêneto – para eles algo normal de acontecer, pois praticam pouco essa língua devido à distância das suas residências. Ambos concordam que num prazo de vinte anos provavelmente não haja mais nenhuma pessoa que fale Furlan em Guaporé. Essa extinção aconteceu principalmente pelo fato da dispersão de imigrantes da zona rural para a cidade. Como o Friulano era um dialeto difícil de aprender e compreender devido à origem germânica, as famílias se viam obrigadas a falar o dialeto Vêneto, que é mais comum na região.
Os irmãos se despedem falando o dialeto perdido e seguem o seu rumo. Hoje, eles conservam consigo uma raridade histórica que pode estar se perdendo.
Mini Dicionário Friulano (Furlan)
"Primeira coluna palavra em português, segunda coluna dialeto vêneto, terceira coluna dialeto Furlan"
Cavalo - Caval- Tchaval
Cachorro -Can -Tchanut
Vaca - Vaca -Vatcha
Casa - Casa -Tchaza
Colher -Cutcharo -Sedon
Irmão -Fradél -Fradi
Criança -Tosatél- Canaus
Porco - Pórco - Portchet
Dinheiro - Sóldi - Bétchi
Carne - Carne - Tchar
Obs: Todas as palavras escritas nos dialetos Vêneto e Friulano, não respeitaram a grafia original. Foram escritas da mesma maneira da sua pronúncia para facilitar a compreensão dos leitores.
(Reportagem Publicada na segunda edição da Revista Mundo Velho)